Com uma extensão de 17.840.000 km², a América do Sul tem na integração ferroviária um de seus principais desafios quando falamos do comércio e transporte de cargas entre as nações da região. 

Se incluirmos outros países da chamada América Latina, que incluem os países da América Central e do México, na América do Norte, essa extensão é ainda mais expressiva e significativa em termos sócio-econômicos.

Há muito tempo especialistas e profissionais do setor debatem sobre as melhores formas de realizar uma efetiva integração ferroviária na América Latina. 

Para entendermos mais sobre esse objetivo, sua atual situação e viabilidade, conversamos com Jorge de Mendonça, Presidente da Associação Intermodal da América do Sul (AIMAS), sediada na Argentina.

Confira abaixo as visões do especialista sobre o tema!

O contexto geopolítico de integração dos oceanos Atlântico e Pacífico

Atravessar os territórios da região que corta os oceanos Atlântico e Pacífico é um desafio recorrente quando falamos da integração ferroviária na América Latina, já que, além das questões aduaneiras e políticas de cada país, impõe-se também obstáculos de natureza geológica para cada nação.

De acordo com Mendonça, antes de efetivamente pensarmos na integração em si por meio das ferrovias, é necessário investir na integração e cooperação dos países da região de outras maneiras.

“Em primeiro lugar, não devemos sonhar com a integração das ferrovias ou de qualquer outro modo de transporte, mas sim com a integração socioeconômica de nossos territórios”, explica ele.

Segundo Mendonça, é preciso pensar em outros aspectos além dos econômicos para que essa integração possa efetivamente ser alcançada.

“A ferrovia é mais uma, mas é claro que a perspectiva meramente contábil, segmentada e apenas operacional foi o que nos fez perder oportunidades nesse modo de transporte e, com a mesma fórmula contábil, ao invés de econômica, os outros também não chegaram a todos os cantos”, analisa.

Um olhar de atores geopolíticos para o avanço das ferrovias na região

Para o especialista, é preciso que o segmento altere aos poucos sua forma de pensar e desenvolver tais empreendimentos, buscando assim uma maior cooperação que leve à tão sonhada integração regional.

“Desde a década de 1950, quando foi proposta a hipótese dos ‘pólos de desenvolvimento’, esquema que garante que as grandes metrópoles tenham cada vez mais cidades fantasmas nas centenas de quilômetros que as cercam, a promoção da ‘escala’: tudo o que é pequeno é deixado de lado”, observa ele.

Segundo Mendonça, “esse olhar nos ensinou a ser trabalhadores geopolíticos em vez de atores geopolíticos: Buscamos a saída para os oceanos sem buscar a conexão dentro do continente.”

Citando o exemplo dos corredores bioceânicos no sul da Colômbia, Mendonça aponta que, com uma perspectiva geopolítica mais eficaz, tais instalações poderiam ser de cinco a dez vezes mais produtivas, conectando o território da região por dentro e também para fora, ao contrário do modelo atual, voltado apenas para fora.

“Ninguém nega que o que eles querem de nossas economias para enviar matérias-primas para os oceanos está cumprido, mas, se olharmos para dentro também, multiplicaremos nossas economias várias vezes e, claro, haverá a ferrovia integrada para o investimento em fretes rodoviários e para atender o desafio de alcançar os limites oceano a oceano”, complementa.

O especialista comenta ainda a questão da ferrovia de bitola estreita, com menos de 1.435 m entre trilhos, que não pode transportar volume de carga geral (contêiner de dois níveis ou vagões de palete de altura dupla), sendo por isso muito mais cara.

Segundo ele, “por outro lado, trilhos dessa largura ou maiores podem fazê-lo (o Brasil já tem estiva dupla em seus trilhos de bitola larga, mas nunca pode tê-lo em trilhos estreitos: ou seja, a bitola métrica bioceânica é um absurdo).”

A importância da integração ferroviária da América Latina para o Brasil

Falando especificamente da importância que tal integração pode ter para a região, Mendonça destaca os papéis que o Brasil e a Argentina, os dois maiores países da América do Sul em extensão, têm, e o que pode ser melhorado.

“A Argentina é a que conecta mais fronteiras no Cone Sul. O desafio é ‘passar pela Argentina’ ou colocar a Argentina em pé de igualdade e todos venceremos. A Argentina como ponte com o Chile e o Brasil gera um alto custo para as três partes. O pior custo será tudo o que não pode ser feito”, pondera.

Mendonça prossegue, destacando os benefícios que uma integração logística não só das ferrovias, mas também destas com os demais modais, podem trazer.

“Uma ampla integração logística, como a troca de tratores na fronteira (que o semirreboque circula enquanto os tratores entram e saem de seus países), vai gerar uma viagem com maior velocidade comercial, reduzindo o desgaste e desgaste dos motoristas, e ainda melhora o fluxo de divisas entre os países em termos de transporte. Ganha-se de ambos os lados”, observa ele.

O presidente da AIMAS também aponta que “esse olhar para o caminhão é o primeiro passo, e nos leva a entender a integração ferroviária como isso, como tocar juntos no mesmo show, o que não quer dizer que uns sejam donos de outros.”

A importância de uma rede interligada entre diferentes modais na região

Segundo em seu raciocínio, Mendonça crê que a adaptação de regras para diferentes modais poderá gerar mais igualdade e benefícios para toda a América Latina, o que se refletirá especialmente nas ferrovias. Ele explica:

“A integração logística exige a habilitação do semirreboque e do contêiner de 53 pés, que colocará o navio, trem e caminhão sob as mesmas regras e alcançará a máxima competitividade do caminhão, a ponto de o negócio de caminhões poder contratar a ferrovia para ir de um lugar para outro.”

Mendonça prossegue, destacando em números como esta rede interligada pode aumentar e otimizar consideravelmente o comércio em todo o continente.

“Um trecho ferroviário de 100 km ou 1.000 km certamente terá pouca importância para a América Latina. 50 trechos ferroviários de 1.000 km também não serão importantes, mas uma rede interligada, tendo o caminhão como principal cliente logístico, certamente fortalecerá a economia da América do Sul e Central. Nesse momento, os oceanos estarão unidos de um ponto a outro”, explica.

As possibilidades de rotas ferroviárias de integração entre os oceanos Atlântico e Pacífico

Questionado sobre as possibilidades de tais rotas ferroviárias que liguem os oceanos Atlântico e Pacífico, que cortam o continente, Mendonça diz que, mais do que meras possibilidades, elas são verdadeiras necessidades.

“A ligação entre a Europa continental e a ilha da Grã-Bretanha não era uma possibilidade, mas uma necessidade, a partir daí foi possível concretizar-se.

A Santos Corumbá – Antofagasta foi construída há mais de meio século, e interrompida há 12 anos por responsabilidade da Argentina, que desconsidera as conexões internacionais”, observa ele.

Segundo o presidente da AIMAS, falhas de comunicação e de planejamento entre os países da região são uma das causas para a situação, mas ele destaca que é possível avançar nesse sentido e que movimentos já estão sendo feitos.

“Em 2018 participei de uma reunião multilateral entre representantes públicos e privados dos quatro países: Eles estavam discutindo a necessidade de autorizar a circulação de um trem de um país para outro, de uma união de um país para outro, quando a roda já foram inventados e os acordos têm mais de meio século para que os vagões sejam os que circulam e não os trens ou os empregados”, relembra.

O especialista prossegue, relembrando outros exemplos práticos deste atraso por uma demora na organização entre os países da região. Ele diz:

“Algumas ideias estranhas se instalaram na América do Sul: desde os anos 1970, começou-se a considerar que não era necessário expandir a conectividade internacional. A Paranaguá – Antofagasta está parada em Cascavel por falta de resposta da Argentina, e em mais de 40 anos tivemos apenas 700 km pelo Paraguai e Argentina, o que comprova essa estranha situação que o COSIPLAN documenta no relatório de integração 2017 da UNASUL, mas cada corredor da América do Sul é aberta a dúvidas suficientes para que os políticos não tomem nenhuma decisão.

Por outro lado, copiou-se o modelo de ‘acesso aberto’ dos caminhos-de-ferro europeus, que tem tido sucesso no discurso político, mas não nas estatísticas, muito menos na contabilidade de custos.”

Os desafios de construção de ferrovias para a ligação dos oceanos da América Latina

Falando sobre os desafios das ferrovias que liguem tais oceanos, Mendonça destaca algumas especificidades que devem ser tratadas com urgência para que o setor ferroviário possa superar tais obstáculos.

“O principal desafio é eliminar urgentemente as vias estreitas sempre que possível, transformando os corredores em bitola padrão de 1.435 m. As bitolas largas do Brasil (1,6 M) e do Chile e Argentina (1.676 m) podem desenvolver corredores de vagões altos para carga geral e estiva dupla de contêineres, o mesmo que a bitola padrão do Uruguai e Peru, mas não desta forma. trilhas estreitas de nossos países, porque seus centros de gravidade são muito baixos”, comenta ele.

O entrevistado continua, destacando que tais ajustes podem inclusive trazer benefícios financeiros para todos os países envolvidos. Ele explica:

“Um breve cálculo comparativo do corredor Paranaguá – Antofagasta pode mostrar que em bitola métrica poderia perder até US$ 16 bilhões em 30 anos, enquanto em bitola padrão (ou larga), ultrapassa US$ 3 bilhões em superávit: O segredo é a produtividade de cada vagão, de cada comboio e de cada quilómetro de via.”

O papel da Argentina na integração com os demais países do continente

Falando especificamente sobre seu país, Mendonça aponta que houve um abandono por parte de nosso vizinho, o que implica em situações semelhantes para outros países da região, incluindo o Brasil.

“A Argentina era um incentivo para se conectar com todos os países vizinhos, mas, desde o final da década de 1980 começou a ser um empecilho, um problema, pois aos poucos foi abandonando sua própria rede e passagens de fronteira. A Argentina não está de um lado, mas no meio do Chile, Bolívia, Paraguai, Brasil e Uruguai, por isso seu descaso territorial gerou fragilidades na região e em si”, pondera.

Falando sobre formas de contornar tal situação, Mendonça afirma que ela pode ser alcançada “com a Cultura Intermodal, onde a logística está a serviço do território e os meios de transporte para garanti-la, cada um dos players ganha mais dinheiro a cada dia, mas dinheiro do sucesso oferecido aos seus clientes.”

Relembrando a fala de um colega mexicano, outro importante país da América Latina, Mendonça conclui destacando que a integração entre os modais ferroviário e rodoviário é a chave para superar tais desafios e conquistar a sonhada integração.

“Jorge Monzalvo, especialista do México, disse no Congresso Intermodal AMTI 2022 que ‘a cadeia logística está evoluindo para uma rede logística’. Isso só pode ser feito com a cultura intermodal, onde o caminhão é massivamente “a milha comercial” que contrata todos os outros modais”, finaliza.

Para continuar se inteirando, aproveite e leia também nosso conteúdo sobre a autorregulação ferroviária e sua importância para o setor!