Uma antiga frase diz que não se deve ter medo das tempestades, pois são elas que ensinam a navegar. Se a crise que o modal marítimo vive hoje fosse uma destas tormentas que assustam e, ao mesmo tempo, deixam os navegantes mais experientes, poderíamos dizer que é uma das mais longas, adversas e surpreendentes. Certamente, quando ela passar – e vai passar -, deixará ensinamentos que impactarão, de maneira definitiva, todo o setor.
Estamos ainda no meio dessa grande intempérie: com a retomada econômica após um longo período de pandemia – que ainda não acabou e vem causando incontáveis perdas humanas e paralisando as atividades econômicas no mundo – o frete marítimo teve o custo elevado a níveis inimagináveis por causa da demanda acirrada de encomendas de insumos e mercadorias no comércio exterior. A procura por produtos e bens acabou voltando muito mais rápido do que a oferta e há mercados, como o norte-americano, por exemplo, que continuam consumindo fortemente.
Além da questão cultural daquele país, a nação estadunidense conseguiu manter a renda e o poder de compra estáveis graças a pacotes econômicos implantados pelo governo para o enfrentamento da crise causada pelo coronavírus. O Federal Reserve (Fed), que é o banco central americano, por ser extremamente robusto, seguirá investindo para a retomada das atividades econômicas, com a expectativa de US$ 9 trilhões no balanço para o ano que vem.
Com a pressão pela volta do comércio exterior se intensificando, esses mercados têm condições de pagar mais, elevando os preços no mundo todo. Um bom exemplo disso é a comparação do custo do frete entre China e Brasil. Comparando agosto de 2020 a agosto de 2021, o valor até então praticado passou a ser de 20 vezes mais. Esses preços ainda estão longe de diminuir e voltar ao patamar usual antes da pandemia. Para a indústria brasileira, o impacto é doloroso, porque o frete compõe a base de cálculo do custo de importação e de pagamento de impostos e isso influencia diretamente no preço para o consumidor final.
Inúmeros fatores levaram ao atual quadro, que deixa toda a cadeia de importação e logística em profunda crise, no meio dessa tempestade que está longe de acabar. Infelizmente, os produtos ainda podem ficar mais caros e os importadores do Brasil continuarão sendo afetados, porque o consumidor final ainda não recuperou seu poder de compra.
Se não bastassem todos os efeitos da pandemia na cadeia global, o encalhamento do navio Ever Given, porta-contêineres operado pela empresa taiwanesa Evergreen Marine, no Canal de Suez durante seis dias, em março, e a paralisação no início de agosto de um dos principais portos chineses, Ningbo-Zhoushan, devido a um novo surto de coronavírus, vieram para agravar o funcionamento de um sistema que já estava operando no limite e, mesmo assim, não conseguindo atender a demanda no decorrer da pandemia. Ambos os episódios paralisaram as atividades por alguns dias. O problema é que poucos dias parados – nesse complexo sistema – se transformam em meses de atraso.
Quando o desembarque de contêineres sofre algum tipo de interferência, como é o caso do fato ocorrido no Canal de Suez, há um desbalanceamento global do inventário de equipamentos que atinge o maior trade do mundo: o fluxo entre Ásia e Europa. Na sequência, o restante do globo é afetado. Por conta desse incidente específico, mais de 600 navios ficaram parados e milhões de contêineres não chegaram aos destinos. Após a liberação, não é possível atracar tudo no dia seguinte, porque não existe infraestrutura capaz de repor o atraso em pouco tempo. O motivo é que todos os navios e armadores têm uma janela portuária para chegar num dia determinado. Devido ao congestionamento e acúmulo, perderam-se essas janelas e meses serão necessários para recuperar aquela semana de bloqueio do canal.
O modal marítimo é todo interligado e há grande dificuldade para conseguir mais navios em operação numa tentativa de suprir o tempo perdido, porque simplesmente não existem unidades disponíveis para serem colocadas em operação: todas já estão operando. Além disso, o segmento é bastante consolidado, com seis armadores sendo os detentores de, aproximadamente, 70% de todo o market share global. Para chegar a melhores resultados, em meio ao atual caos logístico, os armadores executam um planejamento estratégico que consiste em uma oferta extra.
Isso significa que os navios regulares dos armadores seguem as próprias rotas e schedules habituais. E navios a mais, que não estejam fixos nos trades em que atuam, passam a atuar nos maiores trades do mundo e que pagam mais: Ásia-Estados Unidos e Ásia-Europa. Neste caso, é importante ressaltar que os armadores não visam somente aumentar os lucros, mas precisam receber o que é adequado para executar a estratégia necessária e ainda manter o funcionamento do sistema regular, cobrindo os gastos altíssimos ligados ao funcionamento dos navios, armazenagem e tempo ocioso.
Quando um navio não atraca, começa a falta de equipamentos e de peças de reposição, causando um problema de inventário de equipamentos e impactando o mercado de commodities. A perspectiva é que, ainda este ano, toda a cadeia produtiva global continue enfrentando graves problemas de logística e os valores do frete se mantenham elevados. A torcida é para que os preços se estabilizem conforme o mercado vai se normalizando, o que deve acontecer após 2023, porque novos navios só devem ficar prontos ao final de 2022 e início de 2023 – o que resultará numa capacidade adicional no mercado, em torno de 17%, que mudará essa dinâmica global.
Todo esse custo é repassado ao frete que, de acordo com estimativas da Confederação Nacional da Indústria (CNI), deve seguir escala acima ainda nos próximos meses. Como o consumo ainda não está no melhor momento no Brasil, isso se reflete no volume e na demanda do mercado que, apesar deste cenário, ainda se mantém aquecido. Outro componente deste triste contexto é que o país ainda tem pouca participação no total de contêineres movimentados em todo o mundo e, por isso, não é uma prioridade dos grandes players.
Outro ponto importante a ser avaliado é que a nossa região precisa melhorar a sua própria integração para que, aos poucos, deixe de depender das regiões mais ricas, como acontece hoje. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), será preciso investir mais em infraestruturas locais, uma vez que a pandemia colocou em maior evidência o quão vulnerável é a América Latina nesse mercado, estando pouco integrada com o restante do mundo e ficando na dependência de produtos importados.
Enquanto isso não se concretiza, o comércio precisa planejar as compras para as datas-chave e com intensas vendas no segundo semestre, buscar negociar o que for possível e entender as mudanças que estão em curso. Quando ‘o céu se abrir e a tempestade passar’, certamente o mercado estará pronto para ‘navegar melhor e mais longe’.
* Alexandre Pimenta é CEO da Asia Shipping, maior integradora logística da América Latina e a única da região presente no Ranking dos 50 maiores agentes de carga do mundo – https://www.asiashipping.co/