Da possibilidade de pagamento de bilhetes por meio de criptomoedas até rastreabilidade total de cada viajantes nos vagões, o uso da tecnologia blockchain nas ferrovias já é uma realidade mundo afora e promete agregar inúmeras vantagens ao setor como um todo.
Países como Rússia e China já ensaiam modelos de aplicação do blockchain em diferentes processos e controles de suas linhas férreas, e ao que tudo indica, esta tendência deve se expandir em breve a outros países, o que inclui o Brasil.
E para entender com mais detalhes o que isso tudo significa para o setor ferroviário, nós convidamos o engenheiro Felipe Copche, membro da ANPTrilhos e da equipe de Engenharia de Projetos de Sistemas do Metrô de São Paulo para compartilhar um pouco de sua visão e opinião sobre o tema.
Sendo assim, sem grandes delongas, vamos direto aos pontos. Boa leitura!
O que é o blockchain e como ele pode auxiliar as ferrovias brasileiras?
De forma objetiva e bem didática, Felipe Copche inicia nos explicando detalhes sobre o conceito dessa tecnologia, sua origem e alguns dos principais fatores que tornaram este termo tão conhecido atualmente.
“Em linhas gerais, blockchain é uma tecnologia revolucionária baseada em uma cadeia de códigos digitais criptografados e elencados que possibilita o envio e o recebimento de informações pela internet de forma rastreável, transparente, permanente e inviolável, formando um banco de dados descentralizado, público, armazenado na internet e com redundâncias nas informações distribuídas que praticamente impedem que a cadeia seja corrompida pela falha, atividade de hackers, inatividade de computadores ou nós da rede.
Embora o conceito tenha surgido em meados de 2008 dentro do universo de finanças como uma tecnologia habilitadora para a criação de uma moeda digital, tal como a criptomoeda bitcoin, o termo blockchain tem ganhado uma atenção global crescente há poucos anos, pois existe uma expectativa de que o impacto deste conceito tecnológico nos diversos setores da economia pode ser tão grande quanto foi com a revolução da internet.”
Para dar continuidade, o engenheiro destaca a ligação da tecnologia blockchain com os setores ferroviários e metroviários hoje, ressaltando algumas possibilidades de sua aplicação.
“Quanto ao setor metroferroviário brasileiro, existem algumas possibilidades potenciais de aplicação desta tecnologia visando aprimorar a gestão e os custos no transporte de pessoas e de cargas, dar maior flexibilidade aos passageiros nos bilhetes, além da obtenção de ganhos na cadeia de suprimentos e na gestão de obras em empreendimentos ferroviários com a simplificação e desburocratização das transações enquanto se tem maior transparência no processo.”
Como a tecnologia pode impulsionar o modal ferroviário?
Para exemplificar melhor algumas das possíveis aplicações da tecnologia blockchain nas ferrovias, Felipe nos compartilha inúmeras sugestões práticas que já são realidade em alguns países.
“Atualmente, já se veem testes em campo e a implantação de algumas aplicações utilizando blockchain, que podem ajudar a aumentar a atratividade do modal ferroviário em diferentes aspectos, tais como a emissão de bilhetes inteligentes – oferecendo flexibilidade aos passageiros, seja na validação do bilhete, seja por incentivos em programas de fidelização; na automatização de esquemas de compensação para atrasos ou cancelamentos de viagens de trens para pessoas ou até mesmo no transporte de cargas; e no aprimoramento da cadeia de suprimentos da indústria ferroviária.”
Complementando ainda mais essas informações, Felipe nos traz alguns dados relevantes de outros especialistas no setor, o que reforça ainda mais o avanço e o papel essencial da tecnologia blockchain aplicada ao setor metroferroviário.
“De acordo com Joe Preece, pesquisador PhD do Centro de Pesquisa e Educação Ferroviária da Universidade de Birmingham, a emissão inteligente de bilhetes usando blockchain pode melhorar a experiência do passageiro pela maior flexibilidade, enquanto reduz o desperdício de bilhetes de papel.
Cada operadora tem acesso constante a todos os bilhetes do blockchain e pode verificar a validade em um instante. A competição entre as operadoras é preservada e a plataforma mantém a utilização dos meios de pagamento existentes para que os passageiros possam decidir com quem desejam adquirir os seus bilhetes.
Esses aplicativos podem manter os métodos existentes de pagamento, incluindo dinheiro, cartão e transferência bancária. Já o passageiro pode acessar seu bilhete de transporte de várias maneiras, tais como o QR Code, pela comunicação por proximidade (NFC) para cartões multiuso e em aplicativos da internet.
Em outras palavras, a grande vantagem para os passageiros é que os bilhetes não estão mais restritos a uma operadora de transporte ou dispositivo; eles estão disponíveis a qualquer hora e em qualquer lugar na rede ferroviária, e em qualquer dispositivo. Por outro lado, a comunicação dos dispositivos móveis dos passageiros com a internet a qualquer instante é essencial.”
Felipe ainda complementa destacando que o uso da tecnologia blockchain nas ferrovias pode ter papel essencial na cadeia de suprimentos do setor, agregando redução de custos e mais transparência na relação com fornecedores.
“Pode-se tomar, como exemplo, o processo de fabricação de material rodante para metrôs, que engloba uma variedade de componentes que são adquiridos de diferentes empresas ao redor do mundo: Cada uma dessas empresas, por sua vez, recorre a subcomponentes, como o plástico para o assento ou o metal para as rodas de carro de metrô, formando cadeias complexas entre várias partes interessadas.
Com o blockchain, as partes interessadas da cadeia de suprimento podem se comunicar diretamente, mantendo a procedência e a confiança na relação com um melhor custo-benefício, já que elimina a necessidade de agentes intermediários que acarreta custos para processar e transacionar dados entre empresas. Por outro lado, como qualquer outra tecnologia emergente, podem existir problemas técnicos a serem superados em novas fases de aprimoramentos.
Atualmente pesquisadores têm procurado melhorar alguns gargalos como a velocidade das cadeias de blocos e a interoperabilidade entre várias cadeias. Futuramente, com o auxílio da Internet das Coisas (IoT), o blockchain pode ajudar a automatizar as cadeias de suprimentos.
Como exemplo, no caso de um sensor detectar que um componente precisa ser substituído, é criado um contrato inteligente no blockchain que solicita automaticamente uma peça totalmente nova, sem a necessidade de interação humana, economizando tempo e dinheiro.”
O que pensam os especialistas do tema sobre o blockchain e uso de outras tecnologias para o segmento ferroviário?
“Como ocorreu com diversas outras novas tecnologias e aplicativos, o blockchain tem passado pelo familiar ‘Ciclo de Hype’ de tecnologias emergentes, já que houve a empolgação inicial das possibilidades de aplicação quando a tecnologia surgiu, seguida por certa desilusão quando parte dessas possibilidades não foram percebidas rapidamente. No momento, uma avaliação mais ponderada parece estar surgindo, e há uma consciência crescente dos benefícios no longo prazo que a tecnologia pode proporcionar, embora pareça ter havido relativamente pouca atividade relacionada ao blockchain na indústria ferroviária mundial”, opina Felipe.
O engenheiro dá prosseguimento, trazendo mais informações e dados relevantes sobre o tema, além de destacar exemplos práticas de aplicação – e resultados – da tecnologia Blockchain nas ferrovias de diferentes países e regiões.
“Em 2019, uma pesquisa de investimento em tecnologia pela Global Railway Review revelou que nenhum entrevistado estava ciente de que suas organizações tinham planos de investir em blockchain nos próximos dois anos.
No entanto, tem havido iniciativas em alguns países entendidas como evidências de que o blockchain já vem sendo levado a sério por algumas organizações ferroviárias. Tais como:
Suíça
A empresa ferroviária suíça SBB testou o uso de blockchain para um sistema de gerenciamento de credenciais para empregados em seus canteiros de obras. Já a empresa ferroviária estatal russa, RZD, está supostamente testando a tecnologia como um meio de implementar contratos inteligentes visando facilitar a cooperação entre a ferrovia, uma empresa de transporte e um terminal portuário.
China
Na província chinesa de Sichuan, uma plataforma de blockchain transfronteiriça foi colocada em operação para facilitar o comércio ao longo da Nova Rota da Seda.
Além disso, a influente Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China disse que o blockchain será uma das várias tecnologias emergentes que a China usará para gerenciar seu fluxo de informações nos próximos anos.
Como exemplos de bilhetagem inteligente, pode-se citar a plataforma WeChat de pagamentos por APP para o metrô de Shenzhen conjugada com outros transportes públicos na metrópole, incluindo táxis e ônibus de aeroporto.
Rússia
No início de 2019, o Chefe do Fundo de Pensão da Federação Russa havia declarado que estava preparando um acordo com a Russian Railways sobre o uso do blockchain a fim de eliminar falsificação e fraudes, além de elencar outros benefícios, e com um teste piloto previsto em uma linha da ferrovia de Moscou.
Alemanha
A empresa DB Systel, com sede em Frankfurt, subsidiária integral da Deutsche Bahn AG e parceira digital para todas as empresas do grupo, na busca de melhorar a experiência do usuário e preencher lacunas em serviços de mobilidade, em sinergia com a IBM, está criando uma plataforma blockchain para fornecer uma experiência de viagem “perfeita” para seus usuários durante a reserva de bilhetes e possibilitando transparência entre os provedores de mobilidade.
Na Europa, uma das intenções mais ambiciosas e conhecidas para o uso de blockchain em ferrovias vem dos especialistas da Deutsche Bahn, que propõem digitalizar toda a rede ferroviária com a tecnologia blockchain visando implementar uma forma mais dinâmica de controle do sistema, descentralizando as operações ferroviárias e permitindo que os trens encontrem rotas e tomem decisões que são protegidas e protocoladas de forma auditável. Os especialistas também sugerem que o blockchain possa ser usado para realizar a manutenção preditiva, registrando não apenas os estados de todos os componentes em tempo real, mas também uma prova de execução de reparos e manutenção, bem como a documentação e rastreabilidade das etapas individuais do processo.
Reino Unido
De acordo com a companhia britânica Rail Safety and Standards Board (RSSB), cujo objetivo principal é melhorar o desempenho e a segurança de toda a rede ferroviária da Grã Bretanha, em 2017 foi criada uma organização chamada de Blockchain in Transport Alliance (BiTA) com cerca de 500 membros dos setores de carga, transporte, logística, incluindo empresas ferroviárias americanas e canadenses, além de indústrias associadas, visando impulsionar a adoção de tecnologias emergentes através do desenvolvimento de padrões da indústria, na educação de seus membros em aplicativos, soluções de blockchain e similares como a tecnologia de registro distribuído (DLT), desta forma incentivando o uso e a adoção de novas soluções no setor.
O grupo Gartner, que assessora empresas sobre tendências e tecnologias, prevê que os contratos inteligentes baseados em blockchain serão comuns na economia nos próximos 2 a 5 anos e que as aplicações em transporte e na cadeia de suprimentos serão comuns nos próximos 5 a 10 anos”, finaliza o especialista.
Como o setor ferroviário brasileiro pode seguir crescendo neste aspecto?
Aqui, Felipe sugere alguns fatores essenciais que devem ser levados em consideração pelo Brasil na implementação da tecnologia blockchain em suas ferrovias. Ele explica:
“Além de acompanhar e avaliar o desempenho das primeiras iniciativas de aplicação da tecnologia blockchain em ferrovias de outros países e até mesmo testar o pagamento do transporte por trilhos com criptomoedas, dentro do aspecto técnico recomenda-se que o setor ferroviário brasileiro, por meio de núcleos de pesquisa e inovação tecnológica associados com centros acadêmicos, além de consultas técnicas aos provedores globais de soluções tecnológicas, continue monitorando algumas questões e obstáculos que a tecnologia blockchain deve ainda superar, tais como:
Sustentabilidade
Com a energia extra consumida pelos computadores de determinadas redes durante a competição em adicionar novos blocos válidos à cadeia em troca de recompensas por criptomoedas.
Segurança
Uma vez que um indivíduo ou grupo que controle mais de 50% do poder de computação de uma rede pode impedir, como regra consensual vigente do algoritmo do blockchain, que as transações sejam confirmadas, parando assim as transações que ocorrem entre alguns ou todos os usuários (conhecido como ataque de 51%).
Escabilidade
Já que na medida que as plataformas de blockchain se tornam mais amplamente adotadas, pode também gerar estresse na rede, por exemplo, acarretando em lentidão nas transações, especialmente em aplicações não relacionadas com criptomoedas e que estão em um estágio relativamente preliminar, como as iniciativas do setor ferroviário que se encontram ainda limitadas em escala.
Ou seja, a tecnologia ainda é relativamente nova e requer um exame minucioso antes da implantação em grande escala”, opina Felipe.
Quais outras ações podem ser implementadas e que resultados podemos esperar delas?
“Considerando o contexto atual, a contaminação pelo vírus da Covid-19 pode ter aumentado o desejo de conceber novos sistemas de bilhetagem que minimizem ou eliminem a necessidade de filas na compra de bilhetes, e que dispense o uso do papel ou de telas sensíveis ao toque na validação dos acessos públicos.
Com a queda de receitas, além das vantagens da bilhetagem inteligente, o setor ferroviário pode se beneficiar também com menores custos na desintermediação de sua cadeia logística.
Graças aos benefícios que a tecnologia blockchain nas ferrovias poderá proporcionar tornando transparente elementos de fornecimento de toda a cadeia de suprimentos, nas fases iniciais do processo de fabricação de novas frotas de trens e dentro de um contexto pandêmico, existe a possibilidade de adquirir até mesmo algum material especializado com propriedades antibacterianas ou antivirais a partir desta relação aberta entre insumos e novas necessidades do cliente final.
Outra ação que pode fomentar a adoção de novas tecnologias pelo setor a partir de ganhos mensuráveis é estimular a inovação no país por meio de startups, áreas de projetos das empresas e núcleos de inovação com foco em ferrovias considerando alguns pilares tecnológicos disruptivos combinados como o Blockchain IoT (BIoT), que associa os benefícios da confiança e da segurança proporcionados pela cadeia blockchain com a Internet das Coisas (IoT), mas também outras tecnologias que coletam dados em campo para o armazenamento em nuvem, análises remotas em tempo real e o processamento local descentralizado (Edge Computing), extração de relatórios analíticos de séries históricas de dados por B.I. e dados variados conjugados por Big Data, a automação de tarefas, a aplicação de Realidade Aumentada nos ambientes públicos das estações e na manutenção, dentre a integração de outras tecnologias mais recentes, pois combinadas podem contribuir com soluções inéditas e otimizações a serem aplicadas na redução do custo operacional e no aprimoramento da gestão das linhas ferroviárias, além da criação de melhores indicadores, a adoção de práticas mais atuais e novos conhecimentos (insights).
Tais benefícios podem ajudar a atingir novos patamares de qualidade de serviço e ampliar a percepção da sustentabilidade econômica e ambiental do modal, aumentando a atratividade tanto do setor de transporte de passageiros como de carga, seja nas fases de implantação e de operação do empreendimento.”
Esas são algumas informações úteis sobre a infinita possibilidade de uso da tecnologia blockchain nas ferrovias. E apesar de parecer algo novo e em fase inicial para o setor, algumas aplicações práticas mundo afora já apontam para uma nova Era tecnológica sobre os trilhos.
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